# Quem Precisa De Compaixão? ========================== ## Um ensaio filosófico acerca de moral, costumes, veganismo e ceticismo. ---------------------------------------------------------------------- [Alexandre Magno Querino A. Silva](https://medium.com/@alexandremagnoquerino?source=post_page---byline--69e15aec3376--------------------------------) [Filosófica Mente](https://medium.com/filos%C3%B3fica-mente?source=post_page---byline--69e15aec3376--------------------------------) 6 min read May 2, 2019 ![fonte](https://miro.medium.com/v2/resize:fit:1400/format:webp/1*ave7kPwjhKf7TDbMeS9EBA.jpeg) Adianto para os que não estão dispostos a dialogar que não sou vegano e nem vegetariano, sou “carnista” ou coisa que o valha. Se este fato sobre mim vá fazer com que você julgue de imediato minha posição como suspeita, errada, cruel ou coisa assim, então pode parar a leitura por aqui. Obrigado, e tenha um bom dia. As palavras seguintes estão destinadas aos que estão dispostos a dialogar e que não tem medo do desacordo. Começarei pelo motivo que me levou a escrever este texto, e em seguida pelo seu objetivo. Eis que me deparo cada vez mais com conteúdos (virtuais sobretudo) dedicados à: convencer as pessoas de que ser vegano é algo sustentável, sem acarretar danos à saúde; comover as pessoas e fazê-las repudiar a exploração a qual os animais são submetidos; e a defender que a posição oposta, não só acarreta danos (à saúde e ao meio ambiente) como é _cruel_. E é neste último apelo moral que consiste o objeto do meu texto. Estou aqui deixando em suspenso toda a discussão nutricional, econômica ou ecológica que possa haver sobre o tema. Sei que isto representa a base técnica do veganismo, entretanto há dois pontos fazem com que esses assuntos não sejam abordados aqui: primeiramente, não tenho conhecimento para tratar dessas coisas; em segundo lugar, quero focar não na discussão técnica/científica que há sobre ser “carnista” ou vegano, mas sim na decisão sobre o que é melhor, o que é bom e o que é ruim (cruel ou compassivo), ou seja, **uma discussão definitivamente filosófica**. Como já comecei a delinear no parágrafo anterior, o objetivo aqui é argumentar contra o apelo à compaixão evocado por muitos veganos. Eu gostaria de localizar minha crítica em pessoas ou grupos específicos, mas o veganismo parece ser algo muito difuso ainda e diversificado e o que me incomoda é um certo aspecto dogmático que vejo difundido por aí. Espero que, mesmo assim, minha reflexão ainda contenha alguma relevância. O ponto onde quero chegar é: não me parece razoável basear normas morais, sobre o que deve-se fazer ou não com animais, num fundamento não evidente. “Não evidente” significa algo que pode ser validamente recusado ou questionado por alguém, motivo de dissenso. Algo evidente seria claro para todos, irrecusável, de modo que sequer geraria uma diversidade considerável de opiniões sobre o assunto. Por exemplo, que abará se come com vatapá é evidente para todos os baianos mesmo que nem todos o façam, não sei como alguém poderia discordar disto. Para articular minha argumentação irei me basear em elementos do ceticismo pirrônico, como apresentado por Sexto Empírico (um filósofo antigo). A ideia consiste em por um pé atrás (talvez até os dois) quando lidarmos com afirmações sobre coisas que não são evidentes, em casos assim deve-se suspender o juízo sobre o assunto. Isso ficará mais claro em breve. Farei menção a uma posição sobre ética (termo que estou usando como sinônimo de moral) com a qual tenho certo apreço, a do filósofo Ernest Tugendhat, apresentada no seu livro “Lições sobre Ética”. Posição que crítica o apelo a compaixão com os animais como um fundamento da moral, colocando os animais como acessórios: podem ou não ser incluídos na moral, dependerá da cultura em questão e seus valores. Também tratarei disso com mais detalhes a seguir. “Que é a boa a ação?”, “Que é a má ação?” São perguntas que atravessam pelo menos os últimos dois milênios, a diversidade de posições e perspectivas varia tanto que podemos ficar uma eternidade investigando, mas qual a razão de dedicarmos tanto tempo a estas questões, aparentemente simples? Eu acredito, seguindo o ceticismo, que a razão está no fato de que se trata de afirmações sobre o que é não evidente. Apresentarei dois exemplos de afirmações: (i) na Bahia acarajé é comumente comido com vatapá; (ii) pensar no bem público em detrimento do bem privado é bom, ou ético. Espero aqui que o leitor possa reconhecer a possível diversidade de opiniões que podem existir sobre o segundo exemplo, algo que não acontece com o primeiro (ao menos não se colocado nestes termos). O que precisamos para termos certeza, da primeira afirmação é muito simples, ir na Bahia a perguntar a qualquer um, por exemplo, creio que isto lhe garantirá certeza sobre isso. Já sobre o segundo caso, creio não haver viagem ou habitante que lhe garanta certeza sobre isso. Uma fotografia de um autêntico acarajé pode lhe confirmar a todos a afirmação (i), mas não temos fotografia do “Bem” que confirme (ii). **O ponto que quero chegar é o de que, pela razão de haver um desacordo gritante sobre temas morais, deveríamos ao menos baixar nosso nível de certeza sobre estes assuntos, evitando determinar para os demais o que eles devem ou não fazer com base em critérios morais que são essencialmente opinativos e facilmente recusáveis.** Alguém poderia objetar que estou usando um critério de evidência muito fraco, afinal a evidência de (i) é garantida pela cultura do lugar (coisa que não é tão consistente e homogênea assim)e pelos costumes em última instância. O mesmo poderia ocorrer com (ii), e até mesmo com a moral vegana. Sim, estou de acordo com isso. Minha opinião, de modo geral, se apoia nos costumes, se na Bahia as pessoas estão acostumadas a comer acarajé com vatapá isso parece ser o que torna (i) verdadeiro e evidente para os que habitam ou conhecem a Bahia. O mesmo aconteceria com o veganismo. Se numa comunidade as pessoas tem o costume de serem compassivas com os animais, é evidente para eles que é assim que se deve proceder. A problemática surge por que, de modo geral no ocidente, não existem em larga escala comunidades assim, como os próprios veganos defendem, a crueldade animal é algo muito generalizado e cultural na maioria (senão em todos) os países ocidentais. É agora que convido Ernest Tugendhat. Gostaria de trazer alguns elementos de sua filosofia para a discussão, Tugendhat elenca três princípios básicos para regular a inclusão ou não de certos entes na moral, estes são: (i) reciprocidade; (ii) consciência de si; (iii) comunicação. A ideia é que podemos incluir certos grupos, como fetos, animais etc. na moral em função da satisfação ou não destes princípios. Se um ser tem consciência de si próprio, se ele é capaz de se comunicar conosco e se ele tem a capacidade de agir moralmente conosco, então devemos _necessariamente_ incluí-lo em nossa moral. Me parece que os animais só satisfazem um destes princípios, o da consciência de si (recentemente reconhecido), mas isso não significa que por este motivo está necessariamente liberado todo tido de atrocidades com animais, fetos e quaisquer outros seres que não se encaixem nos princípios acima. Tugendhat crítica o subjetivismo associado ao apelo à compaixão, pelo fato de que é um critério individual. **Alguém pode simplesmente não ter compaixão com animais, o que o isentaria da responsabilidade moral com os animais.** O autor coloca uma saída, para mim razoável, para esta situação. A não satisfação dos princípios faz somente com que os animais não sejam _necessariamente_ admitidos na moral, isto não implica que estejam necessariamente excluídos. Tugendhat diz que não só animais como fetos, por estarem nesta situação podem ser vistos como acessórios da moral. **Ser um acessório significa que fica a critério de cada cultura o acolhimento ou não desses seres em sua moral.** Chego agora à minha conclusão. O ceticismo me obriga a ao menos rebaixar meus níveis de certeza sobre que atitude é melhor, ou mais ética, que outra. Me valer dos meus costumes é uma saída comum, e bastante válida para o pirronismo. Utilizando os elementos trazidos por Tugendhat (deixando em aberto se estou ou não de acordo com sua teoria geral), diria que estes princípios podem servir ao menos como uma base **objetiva** para pensarmos o tema, diferente do apelo subjetivo à compaixão, e que ver os animais como acessórios deixa livre o caminho para uma possível mudança dentro de uma certa cultura. Entretanto, eu vejo essa possível mudança como algo de gradual, dialogado e consensual, e nunca como algo abrupto ou feito pela coerção e violência. Devemos sempre, em minha opinião, ter em mente o ceticismo para que deixemos sob suspeita nossas crenças (morais inclusive). Por mais que acreditemos que nossa posição é melhor que a de outrem, isto pode parecer evidente para nós, mas não para o outro. Meu maior intuito aqui foi insistir numa posição que acima de tudo respeite o desacordo, que é inerente a estes assuntos. Espero ter conseguido fazê-lo.