ARTIGO PUBLICADO Referência: SILVA, A. M. Q. A. Mente, cérebro e anomalia. **Argumento**, n. 16, p. 90-102, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/argum/article/view/33627. Tags: #escritos #problema-mente-corpo #anomalia #permanentes #filosofia_da_mente #donald_davidson #jaegwon_kim *** # Mente, cérebro e anomalia Alexandre Magno Querino Amaral Silva (UFBA; FNDE) Resumo: No presente trabalho apresentarei o Monismo Anômalo de Donald Davidson, sua crítica ao reducionismo fisicalista e avaliarei sua proposta de se fazer Psicologia como Filosofia. O fisicalismo tratado aqui pode ser genericamente descrito como uma doutrina filosófica que tem a pretensão de explicar eventos mentais através da explicação de eventos físicos, aqueles sendo tratados como idênticos ou supervenientes a estes. Davidson defende que este pretenso reducionismo não é possível, os eventos mentais escapam às explicações físicas. Apresentarei mais detalhadamente o problema e, em seguida, farei uma exposição inicial dos três princípios teóricos enunciados pelo autor, a saber: princípio da interação causal; p. do caráter nomológico da causalidade; p. do caráter anômalo do mental. Com estes princípios em mãos poderemos delinear uma versão da Teoria da Identidade (Token Identity Theory) que é diferente da usual. O autor defende que: embora haja interação causal entre mental e físico, não podem existir leis causais deterministas que expliquem os eventos mentais, as leis são sempre físicas. É justamente esta resistência de adequação à leis causais que caracteriza a anomalia do mental. Avaliando o argumento davidsoniano, chegamos à conclusão de que sua proposta é adequada ao considerarmos a opacidade semântica que eventos mentais oferecem a teorias físicas. Porém, mantém-se em aberto a questão sobre se este é mesmo um impedimento radical ou se depende do avanço das teorias físicas sobre o cérebro. Palavras-chave: Filosofia da Mente, Donald Davidson, Monismo Anômalo, Fisicalismo, Reducionismo. ## Introdução Hoje levantei-me da cama e fui à cozinha fazer o café. Se, por acaso, eu tivesse um vizinho bisbilhoteiro que, ao me observar pela janela, tentasse explicar por que fiz essas coisas, que palpite ele daria? Vamos supor que além de mal educado ele também seja reducionista, e que diga que me levantei porque meu cérebro entrou em um tal estado que me fez despertar, comandou meus músculos esqueléticos para que permitissem meu deslocamento até a cozinha onde fiz o café, e assim por diante. Eu teria de conceder-lhe certa razão quanto ao que aconteceu com meu corpo nesses episódios, de fato sem o corpo funcionando deste modo eu jamais teria levantado e desfrutado de meu tradicional cafezinho. Entretanto, eu não diria nada disso se me pedissem uma explicação de minhas ações, muito pelo contrário. Diria que, por exemplo, levantei porque percebi que era segunda-feira, quis fazer o café porque eu gosto de café, e que assim sigo o curso de minha vida cotidiana. É bastante razoável acreditar que meu cérebro tenha causado a ativação de meus músculos e permitido a execução de meus movimentos, mas parece que minhas crenças e desejos também exercem algum papel. Todavia, meu cérebro e meus músculos são coisas de uma mesma natureza, são coisas materiais, físicas. E meus estados mentais, que tipo de coisa eles são? Examinemos. Descartes defende em suas Meditações que alma e corpo são substâncias distintas, cada uma com seus modos e atributos próprios. Admite também que o mundo material, dos corpos, é causalmente fechado. Isso significa que a causa de um evento material só pode ser outro evento também material, mas disso surge um problema: como explicar ações intencionais, nas quais os eventos mentais têm um papel relevante, até mesmo causal? Embora Descartes tenha admitido uma tal união substancial que explicasse essa condição peculiar da relação mente-corpo, isso permanece ainda como um ponto que necessita de esclarecimento. #### Como poderia um evento em uma mente imaterial alterar um objeto material? Como um evento físico pode gerar uma mudança em uma mente imaterial? A distância metafísica que Descartes coloca entre as mentes e os corpos materiais parece impedir sua interação causal. (HEIL, 1998, p. 23, tradução nossa). A dificuldade deixada por Descartes (que pode ser chamada de problema mente-corpo) gerou diferentes posições dentro da Filosofia da Mente, dentre elas a Teoria da Identidade (Token Identity Theory). Esta tem como um de seus pressupostos a recusa a qualquer divisão substancial, é monista, o que significa dizer que admite o mundo como sendo somente material. Porém, afirmar que não há divisão substancial entre eventos mentais e físicos acarreta como consequência uma dificuldade teórica, a saber, a de encontrar entre as coisas materiais (no cérebro, por exemplo) algo que seja como crenças, desejos, emoções, etc. #### Quanto mais aprendemos sobre o sistema nervoso, no entanto, mais descobrimos correlações aparentes entre ocorrências mentais e acontecimentos neurológicos no cérebro. \[..\] Suponha que essas correlações fossem perfeitas: cada estado ou processo mental poderia ser correspondido a algum estado ou processo neurológico. O que devemos fazer com isso? (HEIL, 1998, p. 71, tradução nossa). A Teoria da Identidade pretende, como o próprio nome sugere, identificar quaisquer eventos mentais com seus respectivos eventos cerebrais. A ideia é a de que concomitante ao momento em que tenho a crença de que comi algo doce, por exemplo, meu cérebro entra num tal estado específico que corresponde, é idêntico, àquele evento mental. A vantagem de uma teoria como essa é a de poder explicar os eventos mentais a partir de elementos observáveis, o que permite uma abordagem propriamente científica de nossa vida mental. Poderíamos, então, entender a mente humana de tal modo que permitisse descobrir suas regularidades, suas leis de funcionamento e obter um grau razoável de previsibilidade de eventos (típico do conhecimento científico). Poderíamos, talvez, com o avanço dos conhecimentos sobre o cérebro, ser capazes de replicar uma mente ou até mesmo criar uma máquina que pensa e age intencionalmente. A distinção entre o conhecimento do cérebro e da mente é só uma questão de grau e não de tipo. Essas pretensões são realmente de fazer saltar os olhos, mas, se me é permitido, farei uma consideração. Retomemos cuidadosamente o exemplo inicial: será que explicação dada por meu vizinho bisbilhoteiro pode realmente explicar minhas ações? Podemos questionar a capacidade de uma descrição puramente física de dar conta da intencionalidade de minhas ações. Esta é uma crítica que faz Donald Davidson ao fisicalismo reducionista. Embora Davidson seja também um filósofo fisicalista, sua teoria é caracterizada como um Monismo Anômalo. ## Uma versão da Teoria da Identidade É bastante comum, nos dias atuais, a posição de que mentes, e seus eventos mentais, fazem parte do mundo material (contrariando o tradicional Dualismo Cartesiano). Vou me referir a esta posição monista genericamente como fisicalismo ou materialismo. Não se trata de uma posição unitária, há um considerável número de vertentes e posições diferentes competindo entre si. Continua sendo uma dificuldade delimitar qual exatamente é o lugar da mente no mundo natural. O objeto a ser estudado aqui é o Monismo Anômalo de Davidson. O autor parte de três princípios: (i) ao menos alguns eventos mentais estão causalmente relacionados com eventos materiais; (ii) sempre que há o estabelecimento de uma relação causal, há necessariamente uma lei regulando esta relação; (iii) eventos mentais não se adequam a leis causais, são anômalos. O autor parece encarar estes princípios não somente como inegociáveis mas também como irrecusáveis. Quando observamos e examinamos nossa experiência cotidiana não podemos nos furtar de admitir que alguns de nossos eventos mentais (crenças, desejos, decisões, etc.) causam ou são causados por eventos materiais que ocorrem no mundo, ou que as leis causais que encontramos na natureza são regulares e deterministas, ou que, a despeito deste determinismo da natureza, nossas mentes resistem à qualquer adequação a leis gerais. O que Davidson chama de eventos materiais (material events) e eventos mentais (mental events) são acontecimentos que podem ser descritos como tais. Algo como “a caneta está sobre a mesa” é um evento material, uma descrição que se utiliza de uma linguagem (chamemos de L) que contém somente predicados físicos com verbos como “estar”, “cair”, “dissolver”, etc. Eventos mentais são aqueles que contêm predicados mentais em sua descrição, como por exemplo: “Adamastor não quer dançar”. Se utilizarmos de uma linguagem com predicados mentais (L’) com verbos como “querer”, “preferir”, “crer”, etc., então teremos uma descrição adequada a um evento mental. Além do tipo de verbo utilizado em suas descrições, eventos materiais e mentais diferem em outro aspecto. Eventos materiais sempre se adequam a leis causais, eventos mentais não. Quando estamos diante de um evento material que possa ser descrito como “a rocha caiu no chão” podemos supor que há leis causais que regem este acontecimento, e que podem ser usadas para explicá-lo. Esta minha última asserção é verdadeira em função de que as explicações utilizadas para dar conta desse evento particular podem ser generalizadas para qualquer acontecimento do tipo “queda de rocha”, isto é precisamente o que significa ser regido por uma lei. Quando estamos diante de uma evento mental como, por exemplo, “Adamastor não gosta de borboletas” é preciso notar que a nossa compreensão desta descrição depende, por um lado, do significado destas palavras na linguagem, por outro lado, do significado que esta frase tem no esquema conceitual do sujeito em questão. Diferente do exemplo da rocha que pode ter seu movimento generalizado e encaixado sob leis. #### A fim de interpretar o comportamento verbal, devemos ser capazes de dizer quando um falante detém uma frase que ele diz ser verdadeira. Mas as sentenças são consideradas verdadeiras em parte por causa do que se acredita, e em parte por causa do que os falantes querem dizer com suas palavras. O problema de interpretação para isso é o problema de abstrair simultaneamente os papéis da crença e do significado no padrão de sentenças ao qual um falante adere ao longo do tempo. (DAVIDSON, 1994a, p.90, tradução nossa, grifos nossos). Como posso saber o que Adamastor entende por “Não gosto de borboletas”? O meio mais coerente seria, ao meu ver, inquirindo-o. É preciso dialogar com o sujeito, conhecer suas crenças e suas respectivas relações, saber o que ele sabe e o que não sabe, seus desejos e aversões, em suma, é preciso diálogo. A questão é que mesmo após um exaustivo diálogo com o sujeito, com o fim de compreender o que na mente dele significa “Não gosto de borboletas”, o resultado desta investigação só pode dizer respeito a este indivíduo em particular. Quando analisamos uma rocha, com certa massa, dimensão, tenacidade, elasticidade, etc., podemos conhecer suas propriedades a ponto de generalizá-las para qualquer rocha que tenha estas características. O significado de “massa”, por exemplo, quando se analisa as propriedades de uma rocha é precisamente o mesmo quando se analisa qualquer outra rocha. O significado de “gostar de borboletas” para uma pessoa não pode ser generalizado para as demais, pois o conteúdo deste significado, ainda que possua um fator externo e cultural, depende em grande parte de fatores particulares (crenças, desejos, ações, etc.). Imagine, por exemplo, duas pessoas que dizem gostar de borboletas, mas uma delas acredita que borboleta é uma espécie de ave, enquanto a outra acredita que é um inseto. Não se pode identificar estes dois eventos psicológicos, mesmo que, em seus cérebros, o mesmo evento físico (neurológico) seja observado. A Teoria da Identidade fisicalista pretende, a partir da identificação entre o pensar em “gosto de borboletas” e algum estado cerebral, obter um conhecimento geral sobre a mente humana. O problema desta proposta, retomando o que foi dito acima, é que mesmo que a mesma descarga elétrica seja observada em vários cérebros, ainda assim o pensamento “gosto de borboletas”, um tipo de evento mental, poderá ter um significado diferente em cada indivíduo, o que faz com que essa identificação de tipos de eventos mentais não se sustente. #### Pois o que precisa ser enfatizado é que são as descrições de eventos psicológicos individuais, e não tipos de eventos, que são supervenientes nas descrições físicas. Se um certo conceito psicológico se aplica a um evento e não a outro, deve haver uma diferença que pode ser descrita em termos físicos. Mas isso não significa que haja uma única diferença fisicamente descritível que distingue quaisquer dois eventos que diferem em um dado aspecto psicológico. (DAVIDSON, 1994b, p. 134-136, tradução nossa, grifos nossos). A proposta de Davidson é a de uma Teoria da Identidade não de tipos mas de eventos particulares. Disso se pode concluir que há sim identidade entre mental e físico, mas sempre entre o evento na mente de um indivíduo e um evento material no cérebro deste mesmo indivíduo. ## A impossibilidade de leis psicofísicas Quando estabelecemos uma lei causal entre dois eventos materiais ela é, segundo Davidson, sempre determinista. Quando descobrimos que há uma relação causal entre o acontecimento de uma combustão completa (causa) e a liberação consequente de CO2 e H2O no meio (efeito), isto significa que em todos os casos particulares de combustão completa ocorrerá o mesmo. Mas e se, por exemplo, descobrimos que a causa de um crime cometido foi um adultério? Poderíamos determinar que em todos os casos em que houver uma traição, haverá um crime idêntico? É claro que eu teria de descer aos mínimos detalhes de cada exemplo para haver uma comparação justa. Do mesmo modo que estaria garantida as CNTP (Condições Normais de Temperatura de Pressão) no exemplo da combustão, no segundo exemplo os estados neurais dos sujeitos deveriam ser também constantes e idênticos, mas o meu ponto aqui é outro. A luz do que foi dito acima, afirmo que: mesmo que pudéssemos garantir que dois sujeitos tivessem os mesmos estados neurais, seus estados mentais ainda poderiam ser diferentes em sentido semântico. Quando uma explicação mental entra em jogo, como modo de compreender as causas de uma ação intencional, precisamos interpretar os eventos mentais de outrem para que possamos efetivamente racionalizar seu comportamento, explicar adequadamente suas ações. Quando dialogamos com alguém estamos sempre sujeitos a ajustar os significados de nossos termos comuns. Se converso com alguém sobre baleias e meu interlocutor não sabe que baleias são mamíferos, então ao lhe informar isso, meu interlocutor pode ajustar o significado que a palavra “baleia” tem para ele. Neste sentido toda comunicação, segundo Davidson, funciona semelhante a uma tradução, em que precisa-se ajustar o significado das palavras para que os falantes possam se entender. O problema da indeterminação da tradução, uma clara herança da doutrina de W. V. Quine, é importante neste contexto. Não conseguimos transmitir perfeitamente o significado de um termo ao dizê-lo a outro. E este caráter lacunar ou indeterminado é também manifesto em qualquer comunicação entre pessoas quando tentamos compreender ou explicar o comportamento verbal de alguém. Ou ainda, quando queremos traduzir a descrição de um evento mental para um vocabulário de uma teoria física, esta é a heteronomia a qual o autor se refere. #### O caráter heteronômico das afirmações gerais ligando os traços mentais e físicos retoma este papel central da tradução na descrição de todas as atitudes proposicionais e à indeterminação da tradução. (DAVIDSON, 2001, p. 183, tradução nossa) Por mais que eu diga ao meu vizinho bisbilhoteiro que “Eu gosto de café”, ele nunca será capaz de entender exatamente o que isso significa para mim usando de um esquema conceitual puramente físico. Certamente ele entenderá algo, como um bom falante da língua portuguesa, mas sempre haverá lacunas. Por exemplo, ele não saberá (usando de um vocabulário puramente físico) que eu conheço os efeitos benéficos que o café causa em nosso corpo, ou que meu pai foi quem me apresentou esta bebida, ou ainda que, pelo hábito, basta sentir o cheiro do café para que eu me recorde de ótimos momentos que vivi. Tudo isso é relevante para entender o evento mental “Eu gosto de café”, mas é impossível mencionar qualquer uma destas coisas através de um vocabulário puramente físico. Termos como “conhecer”, “perceber”, “lembrar”, “gostar”, etc. sempre estarão presentes. O diálogo, portanto, aparecerá como a principal ferramenta investigativa no momento de interpretar o comportamento verbal e de explicá-lo, porém, mesmo que dialoguemos bastante, nunca será o suficiente para reduzí-lo. A carga semântica necessária à explicação de eventos mentais é opaca para a teoria física. #### É uma característica da realidade física que a mudança física pode ser explicada por leis que a conectam com outras mudanças e condições fisicamente descritas. É uma característica do mental que a atribuição de fenômenos mentais deva ser responsável com o pano de fundo das razões, crenças e intenções do indivíduo. Não pode haver conexões estreitas entre os reinos se cada um deve manter a fidelidade à sua fonte adequada de evidências. (DAVIDSON, 2001, p. 183, tradução nossa) Esta indeterminação da tradução de descrições mentais para descrições físicas é o que impede a formulação de leis causais psicofísicas. Dado que não podemos operar uma redução heteronômica, ou seja, de um esquema conceitual para outro, não podemos substituir as explicações de vocabulário mental pelas explicações de vocabulário físico, como pretendia meu vizinho bisbilhoteiro. A constatação dessa irredutibilidade do mental leva alguns autores ao Eliminativismo, outros ao Dualismo, Davidson pretende conciliar esta tese com a teoria da identidade aceitando a mente como anômala. ## Anomalia do mental Quando há um evento mental como “quero apertar o botão” e em seguida meu dedo se move de modo que o botão seja pressionado, esta ação pode ser explicada adequadamente pela menção ao meu evento mental de *querer* apertar o botão. Entretanto, a única lei causal que se pode formular é entre o movimento físico de meu dedo e sua relação com o botão que pressionou. Diante da impossibilidade de meu querer figurar em uma lei causal, por conter um predicado mental sujeito à uma danosa, do ponto de vista explicativo, lacuna interpretativa, fica claro o seu caráter anômalo: não pode ser enquadrado em uma lei causal, porém, também não pode deixar de ser mencionado quando queremos explicar uma ação intencional. Com isso Davidson propõe, por um lado, um monismo ontológico e, por outro, uma dualidade semântica ou explicativa. De um lado temos a possibilidade de explicar eventos materiais a partir de explicações físicas, nas quais podem ser formuladas leis causais deterministas. De outro lado temos a possibilidade de explicar ações intencionais a partir de explicações mentais, visto que explicações físicas não cumprem esse papel adequadamente (como fica claro no exemplo inicial do vizinho bisbilhoteiro), e este tipo de explicação tem a característica de não poder ser enquadrada em leis deterministas ou traduzida (reduzida) para um vocabulário físico, embora cumpra seu papel de modo adequado. Nisso consiste a anomalia dos eventos mentais: podem explicar ações causalmente mas não se adequam a leis causais. ## Psicologia como Filosofia Diante da confirmação de sua versão da Teoria da Identidade e de sua tese quanto a impossibilidade de leis psicofísicas, Davidson propõe uma alternativa para a Psicologia: que seja feita como Filosofia. Quando interpretamos as ações intencionais de alguém, precisamos mencionar e adequar os respectivos eventos mentais que possam explicar de forma eficaz a ação, essa atitude inclui investigar a mente da pessoa a fim de compreender suas crenças, desejos, conhecimentos e outros elementos relevantes de sua vida mental, e estes foram tradicionalmente objetos de investigação da Filosofia ao longo de sua tradição. A Psicologia, para Davidson, não deve ser nem totalmente livre de elementos empíricos, nem puramente empírica, mas deve figurar entre estes pólos. Não é possível desvencilhar a mente do mundo natural como queria o dualismo cartesiano, mas seu lugar nele não é o mesmo que o de qualquer outro objeto da ciência empírica, como quer o fisicalismo reducionista ou a Teoria da Identidade de tipo. A solução é a compreensão de que, ainda que a mente seja sim idêntica ou superveniente a estados cerebrais, é preciso uma linguagem composta por predicados mentais (L’) para que possamos explicar os eventos mentais que nos aparecem, para que tenhamos entendimento sobre a mente humana. Meu vizinho bisbilhoteiro, ao tentar explicar meu comportamento somente fazendo uso de predicados físicos (L), não só deixou de lado minhas crenças, intenções e desejos como também falhou em explicar minhas ações. Sempre que deixamos de lado o caráter interpretativo e racionalizável dos eventos mentais, perdemos a oportunidade de tratar o outro como um agente racional. ## Conclusão É clara a força do argumento davidsoniano contra a redução do mental ao físico. A opacidade semântica é o principal obstáculo na operação de uma redução adequada de eventos mentais a eventos físicos no cérebro. Porém, penso que ainda cabe um questionamento sobre se esta redução é realmente impossível, como sugere Davidson. Não é razoável ao menos supor que o avanço das ciências do cérebro podem aprimorar-se a ponto de superar esta opacidade semântica? Acredito que o problema da anomalia do mental, enquanto um problema ontológico que versa sobre o lugar da mente no mundo natural deve hoje ser cortejado com a referência aos avanços mais recentes das neurociências. Embora trate-se de um problema propriamente filosófico, penso que este diálogo seja relevante e enriquecedor. Compreender a mente humana talvez seja um dos maiores desafios contemporâneos, logo, seria impossível dar um veredito radical a partir desta breve análise. Então, por ora, estou disposto a concordar parcialmente com o argumento davidsoniano. Embora eu não tenha neste momento razões para afirmar que a mente é redutível ao cérebro, ouso ainda discordar da ideia de que isso seja radicalmente impossível. Não foram poucas as vezes que filósofos fizeram apostas como essas, em relação ao futuro da ciência e da filosofia, e tiveram o tapete puxado de seus pés. É preferido, portanto, deixar este ponto em aberto. ### Referências: 1. DAVIDSON, Donald. Mental Events. In: DAVIDSON, D. Essays on Action and Events. New York: Oxford University Press, 2001, volume 1\. p. 170-187. 2. DAVIDSON, Donald (1994a). Psychology as philosophy. In: Filosofía de la Psicología. trad. Miguel Candel. (Edição Bilíngue) Barcelona: Anthropos, 1994, p. 64-108, 1994 (Textos y Documentos; 19). 3. DAVIDSON, Donald (1994b). The material mind. In: Filosofía de la Psicología. trad. Miguel Candel. (Edição Bilíngue) Barcelona: Anthropos, 1994, p. 110-152, 1994 (Textos y Documentos; 19). 4. HEIL, John. Philosophy of mind: a contemporary introduction. London: Routledge, 1998. 5. MALPAS, Jeff. "Donald Davidson", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: [https://plato.stanford.edu/archives/fall2019/entries/davidson/](https://plato.stanford.edu/archives/fall2019/entries/davidson/). 6. SILVA FILHO, Waldomiro José. Externalismo sem dogmas. O Que nos Faz Pensar (PUCRJ), Rio de Janeiro, 2007, v. 21, p. 113-131. 7. SILVA FILHO, Waldomiro José. Razão e interpretação. Síntese, Belo Horizonte, v. 32, n.103, p. 219-237, 2005. 8. YALOWITZ, Steven. "Anomalous Monism", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: [https://plato.stanford.edu/archives/fall2019/entries/anomalous-monism/](https://plato.stanford.edu/archives/fall2019/entries/anomalous-monism/).